DOCE MEL
Enquanto a vida segue brusca na cara dos transeuntes - que só consegue arquitectar , pousa o saco pardo , senta-se e pede de soslaio uma bica. Acende um cigarro e imagina o esvoaçar do fumo espesso , mais espesso que o creme ténue e acastanhado do expresso que aos encontrões é amarado na mesa . Pousa o cigarro , adoça o café e solta o cabelo e o pensamento .Esfrega os olhos com as palmas das mãos , suavemente , na tentativa de desembaciar a realidade que seus olhos não vislumbram. Maria , 25 anos , cega. Este é o seu bilhete de identidade. Tirando o inevitável contar de dias, afundar de rugas, seu documento era vitalício… Gostava do seu Nome, seu sexo e a esperança de ver perdeu-se á nascença. Não havia muito a mudar!
Por vezes, muitas vezes, encontrava-a triste neste mesmo café , aonde entre colisões nos encontramos antes do relógio de ponto - infalível - estar activo.
Sorvo dois goles de café cálido e fito-a sabendo que me observa. Nunca trocamos mais de 2 palavras… um atabalhoado bom dia, ou um inquisitório “tudo bem”…envolto numa paz social…e num sorriso incógnito e sincero….
Mas hoje pedia-me mais… reclamava presença….determinado, aproximo-me da mesa onde sozinha devora a bica e o cigarro…puxo pela cadeira…. Posso?
-Senta-te!
-Chamo-me…
-Eu sei como te chamas… já te vi por aqui varias vezes… respondeu.
-já me vistes?? – Retruco…. surpreendido…
Sim, Sou cega…Não sou deficiente …nem tão pouco “diferente” como essa espelunca do jet7 , do mundo bonitinho , nos querem chamar ….muito gracioso para a câmara coscuvilheira, quando em directos solidários querem apelar á lágrima fácil e o protagonismo obvio … mas não se apercebem que nos insultam…que nos minimizam…que nos humilham… Não sou “diferente” sou igual!
Parou…sacudiu rudemente o cigarro no entupido cinzeiro que sentia no aroma…. Bebeu doce mais um pouco de café e continuou a revelar-se ….
Sim , cega… não invisual….Nunca enxerguei o mundo a cores nem tão pouco a preto e branco…Vejo-o e viajo nele através dos cheiros, sons e sabores e imensas sensações….… tacteio o teu rosto do jeito que tu vez o meu….observo o branquear dos cabelos da minha mãe lendo as funduras da terna face….fujo das ondas quando as sinto aproximar , quando o aroma do mar m´as avisa … e vejo o imenso farol no cabo da esperança pelo zumbido eléctrico e cíclico do rotor da luz…. Em toda a sua imponência! Sim… Já te VI várias vezes por aqui….
-Eu vejo a tristeza em ti…
-Tás Certo…mas se não te importas não quero falar sobre isso… precisava apenas de sentir calor humano neste enregelado lugar …que me desse alento neste obscuro despertar diário … por vezes canso-me da solidão quando todos os demais comentam o golo que não entrou , o aumento da gasolina…as curvas da nova secretária ….ou quando me olham de cima para baixo, abanando o pescoço , lamentando ou reprovando a minha sina…. Gostei imenso deste pedaço que me consagras …soltei a alma…. Agradeço -te…
Levanta-se e estendendo o dedo chama o birrento garçon para terminar a estada… O rapaz entre dois berros para o balcão , diz-me que a minha bica tá paga….Olhei-a….
-Não és desses pois não? – questiona-me sarcástica , mesmo quando ainda me encontro a acordar desta estranha e fascinante revelação…. Desses o que???
-Que levam a mal que uma mulher pague a despesa….riu-se ….
-Não … respondo rápido sem ligar sequer a isso…. Ainda não me deste todo teu nome….
- Maria… Maria da Luz…. Irónico não é?? E afastou-se altiva, num passo certo e apressado adivinhando a hora do labor.
-É pois… pensei , já sem tempo para lhe dizer o que quer que fosse… não que ela não me (ou)visse no que tinha para dizer… faltava simplesmente o que dizer !
Hoje, fumava um cigarro suave, apoiando os braços no parapeito da janela com vista para o teatro da rua. Na quietude do esmorecer do dia , vi Maria sair de um carro . Trazia na mão direita um bouquet de pequenas flores silvestres que só ela conhecia e do qual se soltavam pequenas pétalas que esbarravam escuras no passeio. Maria abraça um homem com o braço esquerdo, apertando-o forte contra seu ventre… enquanto o beija nos lábios , apaixonadamente, prometendo o bailado do beijo e do corpo.
Timidamente, com um certo embaraço e pudor….corro a persiana.
Não quero ver. Não por ciúme ou o que quer que seja…. Simplesmente porque estes momentos querem-se na paz do silencio e na solidão da partilha…sem espectadores….
Sento-me e velejo na musica que agora invade e adorna meu espaço ... Mais amplo e luzidio….
Num esgar de lábios, recordo-me da doçura do meu primeiro beijo….
Há “coisas” maravilhosas que só sabem bem , que só nos excitam e embalam os sentidos , com os olhos bem fechados. Na cegueira.