Raiz

Um calor insuportável que me acompanha neste fim de noite. Da minha varanda, que percorro nas pausas em que gatafunho estas letras em busca de calmaria, observo os pirilampos e outros bichos alados, pequenos, que se atiram desvairados contra as lâmpadas dos candeeiros da avenida.Esse frenético bailado inglório. A perdição da luz. O estertor do fim.
Alguns, poucos, afastando-se da obsessão de ícaro, mergulham silenciosos por entre a sombra, procurando o cheiro da terra. A segurança do chão. A raiz.
Entro para o conforto da cadeira. Meto o nariz na tela e as mãos,livres,remam nestas  folhas alvas disfarçadas de ilhas.Deixo-as que me levem ao abrigo de suas areias.
Celebrou-se o dia de Portugal.De Camões e das comunidades portugueses.Prometi a mim mesmo , desta vez,aqui, tecer letras alegres. Recheadas de esperança. Deixar que os istmos de minh´alma se encharcassem de fé.
Fechei o poema de O´Neil. Soltei os acordeons e os bombos nos braços de gigantones inquietos a anunciar aos berros e urros as festas da padroeira. Para que atordoem e despertem a alma lusa .
Se escrevesse triste ou em tons melancólicos, buscaria a minha província dos tempos do Renault 5 ,da Michele Mouton e dos “Shorts” a ecoar o “comment ça va” nas cornetas do campanário... Esse (querido...) Verão de Agosto na Meca transmontana. Bela e imensa babel de expressões,cores, cacofonia, ridículo e risos. Aldeias a parir alegria pelas costuras. Portugueses na diáspora a reencontrar o aroma das ruas onde nasceram. Hoje foco-me na esperança. Na alegria conforme o prometido. E celebro este meu Portugal tricolor. De verdes , encarnados e amarelos (por vezes vibrantes outras vezes pálidos e cínicos).
No café, onde a meio da manhã mato o vicio,gente tagarela despreocupada. Ouço essas vozes alheado nos meus pensamentos.Não sei do que falam. Muitos deles, muitíssimo mais jovens que eu, falarão da noite passada. Das voltas e do tempo. Eu gosto de falar da chuva. Do cheiro dela num dia quente, como este, que ferve. A banhar a pele da avenida ao de leve. A perfumar de outrora os meus sentidos.

O cheiro da terra.Volto ao inicio. Deixo os jovens na esplanada, absorto aos seus dizeres. Volto à varanda e a breve brisa que agora agita as árvores, perfuma o meu corpo de ventania.Já não tenho a necessidade da luz de outrora. Não me leva ao seu encalço num bailado cru. Nem as asas que os dias decepam, são menos livres enquanto houver ousadia e certeza de chão firme. Raízes!

Reparo que , aos poucos, reduzi o tamanho do meu Portugal. Da plenitude da sua extensão , com suas ilhas, à minha terra. Da minha terra à minha casa.

Aos poucos, sinto que o meu país e tudo aquilo que cabe no coração dos que amo.

E agora sim. Sou feliz nele.

 

 

Crónica publicada no Jornal digital "Diário Chaves"  em Junho de 2022
Rubrica : as palavras tangíveis. 
Irá constar do meu livro de Crónicas (ainda sem titulo) a editar em 2026

 

Comentários

M. Bastos Santos disse…
Como me revejo nestas linhas.
Muito bom.
Robson disse…
Parabéns

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