AS COLHERES DE SOBREMESA

Post oferecido a Irritadinha.

( por tudo e muito especialmente por ser a autora de um dos mais brilhantes bloggs que conheço)

Este post surge num desafio. O objectivo era desenvolver um texto pegando num titulo . E depois ver a forma como cada um o desenvolvia. O meu está aqui e existe um link no titulo para a outra face da colher! Passem por lá!

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Garoto: Não tentes dobrar a colher…. Isso é impossível…. Ao invés, tenta perceber a verdade.

Neo: Que verdade?

Garoto: Não há colher….

Neo: Não há colher?

Garoto: Então perceberás que não é a colher que dobra , mas sim Tu.

The Matrix


Com um ar meio espalhafatoso estende o indicador direito para chamar o serviçal….
Não lhe agrada o atraso da resposta…nota-se em seu olhar emproado e altivo….
Continuo mergulhado nos meus pensamentos tentando á pressa alhear-me á cena….mas o raio da garota continua o chinfrim cénico… e solta numa verborreia aterradora num tom tão empinado quanto o seu cirúrgico narizinho, uma atolamada onomatopeia…
- Psiuuuuu …

-Pssiuuuuuuu…. Você aí…. Chegue aqui sefazfavor (sim, arrogantemente tudo junto…)
Subitamente envolvo-me á distancia no palco… já não consigo tragar nada… tão pouco buscar no universo da minha alma refugio para as minhas divagações….
Este pedantismo pós-moderno na boca da rapariguinha do shopping, rasga a nébula agridoce que envolve o sumarento snack e incomoda-me…
O rapaz , dirige-se acobardado á mesa. Homem feito, talvez nos trinta, de anilha gasta no anelar esquerdo parece o corcunda de Notre-Dame arrastando-se pesarosamente como que em penitencia até á mesa calvário…. Tem dor no olhar… parece que a vida não lhe sorri..Talvez dois filhos, um deles feito de penalty que o obrigou á apressada boda… Nota-se pelo jean gasto que usa completada pela desfraldada camisa que vive em aperto….Já não acredita no amor, nos políticos e não gosta de futebol. Aparenta ser de poucas palavras…
Do outro lado espera-o a impaciência e a soberba. Transforma os farrapos púrpura e carmim que trás no corpo liso em manto imperial de novas democracias… e com os euros verdes que abarrotam na pochette lilás adoutora-se de prepotência perante os infelizes…
- Como é possível servir-me este chocolate quente sem a colher ???? Acha que o vou mexer com os dedos???? Já nem quero isto..nem o vou pagar… esfrioceu…(foi o que ela disse…)
O rapaz-Homem não teceu uma palavra… nem eu.
Passa por mim pesaroso, acenando em desilusão com a cabeça…. Meditando no ridículo da cena , ainda antes de sorver novo chocolate que vai engolir até á ultima colherada – servido a quente pelo patrão estúpido que o aguarda no pedestal do balcão. No milagre dos tempos, na mentecapta cabecinha do patrono, a rapariga já era doutora á força da ilusão das notas na carteirinha chinesa minúscula e era intolerável que ele, que se levantava na noite para á pressa correr três empregos que garantissem leite, se tivesse olvidado da minúscula colher para que a Senhora doutora mexesse o very italian chocolate by Vogue transformado em sobremesa…..
Enquanto o chocolate bruto lhe é servido aos berros , ela abandona o palco. Desvanece imaculada pela porta fora a caminho do shopping aonde exageradamente irá contar o seu triunfo. A menina de seu papá tratada como uma qualquer num snack da baixa??? Que intolerância… Aos ouvidos gastos de suas coleguinhas, será a heroína… e terá direito aos afamados 15 minutos… Será aplaudida! E ouvirá de bocas sábias um “tens toda a razão” em forma de sentença sem recurso! Parabéns!!!! Para que ter a verdadeira ousadia de lembrar o esquecimento???? Em tom simples e natural???? Naaaaaaaaaa…..
O rapaz dirige-se á mesa depois de ter mamado a sobremesa. Passa por mim mudo e fita-me no olhar encolhendo os ombros em vergonha pelo sucedido….Parece-me agora ainda mais velho! Tens já rugas e olheiras profundas…. A camisa continua desfraldada e vejo as haste dos óculos castanhos remendada por três pingos de cola ….muito mais velho… á força de tantas sobremesas que a vida lhe tem dado….Já podia coleccionar colheres….
Levanto-me. Aperto o fecho do casaco vermelho de lã. Deixo no pires conta, mais dois ou três euros que a soma apresentada. Se não tiver que dividir com o patrão…talvez o extra pague a sobremesa que a outra não quis e que a ele lhe saiu do bolso. Não o faço por piedade ou esmola. Apenas os meus problemas ultrapassam os dele.
Saio aproveitando a boleia da noite que entra. Dirijo-me ao velho parque aonde passei a meninice… e hei encostar-me ao velho plátano onde um dia escrevinhei juras de amor. Na pureza e na inocência …
E sigo meditando no raio da gaiata e na merda da colher….
Estas pequenas colheres de sobremesa que ocultam segredos. Frias e intolerantes…. Gastas….
Parecemos nós....



Sugestão musical : Who´s gonna ride your wild horses – U2

Sugestão cinéfila : The prestige ( o terceiro passo)