ANO NOVO

Subitamente…deixa de ter graça o pinheiro verde que anima o canto da casa….
Todas as bolas e fitas coloridas reluzentes lembram o ridículo….
Arruma-se tudo á pressa no canto do sótão e fica esclarecido o mistério porque é que o raio do pinheiro tá todo amassado quando se vai buscar….e a maior parte das bolas partidas….
Ainda cheira a cinza na lareira “must” que projectamos moderna e só se acende uma vez no biénio….
Por lá se esfumam papeis e fitas de embrulho rasgadas á pressa por crianças no minuto do Pai Natal e rolhas de espumante francês barato…
O Ano já tem demasiados minutos para ser novo….
Aos olhos devolveu-se a cor do pecado diário…
Parecem armações de idade em tom negro circular estampadas na pele que as estrias dão um look in quando completos com cabelos grisos….
“Aquele gajo deve ser inteligente”!!!!
Dizem os entendidos que não fazem nenhum e se limitam a constata o labor dos outros…
“É” completa o outro! E complementa – “ trabalha até altas horas…”
“Ahhh, mas o pai ajudou…””deu-le tudo…” e justifica-se assim a inoperância e o facto do gajo” ter uma vida …. Até que, para serenar os ânimos que a consciência do ardil se instala, remata-se “ cá para mim ele deve ter negócios esquisitos”
Bingo….mais duas horas de trabalho de língua até á hora tardia do copo que se bebe na tasca antes de ir para casa ….

Os Garrinchas (que Torga pariu para fazer de S. José) crescem daninhos e cobrem-se de cartão e Jornal num qualquer jardim, esperando – no degelo – que a Aurora volte breve….
Faz parte do postal urbano, das vidas adiadas no consumo do betão….
Aqui as latas não se pagam. Não se recolhem…
Ficam os velhos como tapetes humanos de condomínios….
A reciclar…
Que evitamos rápido para que não pesem na consciência….
A mão que estendem, repele-nos como uma chicotada …tanto quanto o cheiro que brota do corpo e alma desfeitos na imensidão do caminho que trilhou ás avessas….
A mão…concava, acastanhada de surro e pontapés…com o indicador amarelado das beatas miséria que compra na sarjeta…. (Na qual os mais amáveis colocam os trocos negros que se amontoam no bolsinho mealheiro da calça de ganga gasta – a imitar o velho - comprada na benneton ) … chora….
A mão que fala no silêncio do pedinte…na miséria ….no travo amargo deste silencio…
“vai trabalhar malandro” decreta o mesmo gajo, que julgava o outro inteligente até descobrir que andava metido em negócios esquisitos….
“Vai trabalhar malandro”… sai disparado á queima roupa, qual sentença , á mão que em silencio de lágrimas se estende….

Do leste ancoraram Katiuskas e Ivaniovs….
Ambos lorpas … no embuste de pensarem que havia vida melhor por detrás dos postais lindos que apresentam o país turístico…
Ambos comem os restos….aquilo que mais ninguém quer… que se joga fora!
Elas, aos magotes, enfiadas em Ford transit´s, fazem parte do circo sexual, sigiloso e putrefacto que delicia inolvidáveis plateias….
Aprendem no medo a estender a mão para apalpar as piças dos clientes que esgotam garrafas de álcool marado….
A mão branca e alva… feita puta á força….
A mão que alimenta misérias e consola desgraças….
Que come amargo aquilo que mais ninguém quer…
Ligeiramente amarelada no indicador que segura cigarros caros no glamour da podridão…
Eles…parecem capitães de areia….os putos de Ary nos caixotes do hipermercado…
Bulham por pão de ontem e reclamam os ovos e os iogurtes inválidos….
A mão esfacelada nos rebordos do contentor….parece pá de rectroescavadora que revolve alimento nos escombros de postais de boas festas rasgados…
Alimentam o corpo com úlceras na alma…
Os olhos felinos…que assustam a gentalha….são obra da evolução e do medo…
“Olha para estes filhos da puta” - “cabroes do caralho…” nova sentença….o mesmo gajo….
“ Miseráveis da Merda…assim também eu ficava rico caralho…” - ” Chegam para nos foderem o trabalho e depois nem gastam um tostão em comida” - ”Querem lá saber de direitos ou horários…só matando-os a todos… já não bastava a Merda dos pretos….”
“ Não vir aí um Salazar qualquer que pusesse ordem nisto ….”


Sete horas….
A noite negra cai por fim desfazendo todas as duvidas….
O ano que foi novo … já só é um digito….
A cidade ferve….Toda a cidade….
Os carros luzes-gente dos que entram e saem dão cor á noite….
Trocam-se os turnos….
Legais ou ilegais….
O tempo torna-se ébrio…
“Bebes outro?”
“ Bota lá…. ainda tenho uns minutos antes de ir para casa” desaperta o kispo verde e azul e amara a barriga balofa moldada ao balcão…
“E então?”
“Na mesma…Não consigo arranjar nada… Esta semana já é a terceira vez que vou lá cima ao centro de emprego….Nada… Imagina tu que os filhos da puta me queriam espetar numas acções de formação….”
“A sério?”
“Sim…. Com quarenta e dois anos queriam que fosse aprender computadores e essas merdas…p´ro caralho…. Mandei-lhes lá umas bocas que os gajos nem piaram… ficaram cá com uma cachola….”
“ E lá por casa?”
“ Mais ou menos…. A mulher pu-la a dar umas horas por fora, sempre é mais algum que entra em casa…Só o rendimento mínimo não dá para nada…. o rapaz já anda a trolha , não dava nada para os estudos… é mesmo burro o animal…ainda ontem lhe tive que foder os cornos! Nem uma conta de somar sabe fazer sem a puta da máquina! A mãe ainda se meteu ao barulho tava a ver que também sobrava para ela…… a rapariga pró ano também vai trabalhar!!!! Acaba-se o abono! E já tem corpo de mulher!!! Vai na volta ainda me aparece prenha em casa….esta canalha de agora só pensam nisso….Assim vou falar com um amigo que tem uma fábrica de sapatos e oupa….Toca a fazer-se á vidinha….”
“ E não falas-te a esse teu amigo para te arranjar algo para ti?”
“ Paga pouco e sem caixa… sabes como é….”
“Pois…”
“ Mais dois Martinis com cerveja ó chefe….Agora pago eu…”
“ Bota lá… mas tá fazer-se tarde…”
“ Só mais esta…também quero ir…não tarda começam as noticias e eu gosto de ver…”
“Viste ontem????”
“Não….o que???”
“ Parece que andava para ai um gajo… acho que era pedinte ou desses paneleiros de leste…já nem me lembra…parece que o gajo era médico ou engenheiro e andava na pedinchice…”
“ A sério??? Filhos da puta… não têm cabecinha nenhuma…”

......

Sugestão musical - "Com que voz..." - Amália Rodrigues

Sugestão cinéfila - Snatch - Porcos & diamantes