Desculpa, não chegou a Primavera.

Dizem que o sangue circula espesso dentro do homem. Também por dentro assumimos que tudo começa a desaparecer.Sobrando, para nos recordar, as poucas nódoas que caem na memória.Lugares onde a luz não toca. 
Pouco nos incomoda a ficção que sabemos real. Os corpos,aflitos, desnorteados, que tombam na rua difundidos em écrans de alta definição. Longe. Muito longe. Pode-se morrer de muitas noites. Da cor púrpura do entardecer. De súplica. Muitos morrem sem terem vivido.Mas há vozes que vemos morrer,abafadas, no estertor da ausência. Sem um sopro, paz ou consciência, que as ressuscite. A guerra, servida nua, é dos outros. Ainda que, na penumbra, a possamos ver no espelho com a amarga sensação de um pássaro chamado coragem que se quebra contra as pálpebras. A verdade cansa-nos mais do que tudo o resto.è verdade. Muito mais que a injustiça, a soberba ou a guerra sem nome. Deixamos que o dia nos rasgue a pele. Onde o tempo atravesse a carne. Lambemos feridas que não podem sarar. No estilhaço das bombas o sangue, espesso,escarlate,rompe as veias e mancha as mãos. Fechamos a alma. Nus. O coração, cego, desmanchando-se contra as pedras do grito. Vazios no espelho. 
Corpo tão magro de pudor quanto a indiferença que o consome.Invisível. 
E nenhuns pássaros. 
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 Este texto/crónica fez parte de um projecto na imprensa escrita regional a que chamei "As palavras despidas"
 

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