Versos

A noção de espaço. A noção de tempo. As horas que se consomem em cascata. As palavras sinceras que a voz inquieta põe nos nossos lábios que, depois de atiradas, se perdem no caminho. Os cabelos que se pintam de Inverno em todas as estações. A pressa. A noção exata da pressa. As solas dos pés marinheiros. Um mundo. O mundo. O nosso mundo. Atiro , como se fossem barro, palavras soltas nesta página em branco em busca de um poema. Uma estrofe que me baste. Um verso que me inunde.
As areias que o tempo gasta lavram em nós sulcos de ânsia. Ficamos mais divididos. Pobres.
Pedintes suplicando milagres.
Percorro as avenidas de outrora com os pés em bússola e os olhos distantes. Como se em cada órbita vivesse uma era. O tom monocromático, fugaz, dos dias corridos, onde se ganha a vida,mescla-se em grande angular com outros retratos que perdemos.
Desci a rua direita até ao arrabalde, subi, depois, a rua de Santo António rumo ás freiras.
Fazia hora para uma audiência no tribunal. Atalhei pelo Faustino e desci a rua do Olival. Não me vi por ali. Tentei vezes sem conta.Talvez me esteja a tornar velho e amargo. Talvez quando rabisco estas folhas, as encha de dias de antes porque não gosto do que vejo.
Sei que não gosto.
Há pouco soube da partida de uma dama ,de uma amiga. Tinha a idade no sorriso e a existência na bruma dos cabelos quando penteados. Isso em nada ajuda a esta faina. Leva-me de volta à escola. Ás ruas que conheço quando se me sossega o olhar. Quando deixo que a maré me inunde os olhos. Pés descalços, noutras eras ,caminho rente ao bordado das ondas e vou descascando lembranças. Até os gomos se revelarem nas mãos.
Temo saber nessa polpa uma vertigem. Uma odisseia de momentos que nos rompe a carne e nos deixa de ossos despidos. Cerro o olhar.
 

A noção de espaço: Estamos ali. No mesmo chão. No mesmo sitio. Mas já não somos o mesmo.
A noção do tempo: O jogo amargo das diferenças, onde aprendemos o que perdemos e ganhamos.
Temos sempre pressa. A noção exata da pressa e de a sentirmos nos dias que nos consomem. Deixamos de adormecer nos sonhos onde não cabemos. O fruto.
Não apareceu o poema. Procurei-o neste e em todos os outros mundos.
Vi chuva porém. Água descida dos céus como se fora milagre. Vi os últimos pássaros do Outono a despedirem-se de mim. Vi a Elza, que também abalou com as aves, a abrir os braços como quando me abraçava quando lhe cabia no regaço. Sempre lhe coube no coração. E por um instante, sob a preia-mar de um sorriso, os olhos emergiram para lá dos alçados das casas alicerçadas nas vias estreitas, cinza, e viram um céu de nuvens sem tempo.
Recolhi a âncora e parti. Voltei ao trilho.
Quantas ruas são precisas para encher o lugar vazio da saudade?  
Um poema que o diga. 

 
 

 
Crónica publicada no Jornal digital "Diário Chaves"  em Julho de 2022
Rubrica : as palavras tangíveis. 
Irá constar do meu livro de Crónicas (ainda sem titulo) a editar em 2026

Comentários

Maria Teresa Rodrigues disse…
Bravo. um texto muito bom de um excelente autor transmontano.
Anónimo disse…
Fantástico.
José Marinho disse…
Palavras de um escritor de referência transmontana! Obrigado amigo Paulo

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