PAISAGEM
Este Outono que lento vai rasgando os dias...que nos embala é arrasador.
Parece perfeito. Demasiado perfeito.
Entra-nos pela espinha abaixo em forma de friozinho ligeiro que nos eriça o corpo e nos enfeitiça. Torna-nos humanos e balofos…
Canso-me das inenarráveis saídas noctívagas. Cansei-me de aturar malucos….
Procuro a hora do meu silêncio. Tenho necessidade do meu espaço. Da minha solidão. Preciso dela!
Estrondeei meu relógio do corpo há anos. Não adormeço ao tempo do comum .
Conto as horas no olhar. Nos cigarros. Na aurora….Na alma….
Durmo pouco.
Tão pouco….
Os ponteiros escachados de tanto murro que biológico despertador levou, picam-me em revolta. Querem conserto…. Hão-de levar a melhor os desgraçados ... No fim , tudo se paga e acerta…..TUDO SE REPARA….
Lentamente a sala esvazia-se.
Vou ficando.
A preguiça acompanha-me. É amante cruel e possessiva.
Aninha-me como feto no esplendor do sofá e desprotegida põe-se sobre mim…tentando-me.
Resisto-lhe…pouco.
Deixo que me mordisque o queixo..que me dispa a camisa… me palmilhe o peito nu com a palma da mão…
Ficamos assim …unos…ao longo das horas… Na pele! No silencio….
Não lhe sou fiel….
Por vezes ligo-lhe e invento uma desculpa sem nexo…imprópria….descabida….
Por norma sei-o de véspera…
Puro engano….
Ladina, entra sorrateira ….sem avisar….sentindo-me sem guarda na imobilidade do comando da TV …. E crava-se em mim… Doida!!!!!
Fixo os olhos em devaneio num qualquer emagrecimento miraculoso que passa no meu horário nobre….rio-me mentalmente com o antes e o depois…gostava de viver num país assim….
Mas não…só tenho este….
Levanto-me….no escuro vou buscar duas ( e só duas) pedras de gelo.
Trago-as enxutas num vaso de cristal.
Verto para o interior dois dedos de James Martin’s e busco uma cigarrilha negra de folha de tabaco latina. Gosto do aroma…lembra-me erva-santa de cachimbo….
A caixa mágica - Muda - solta um anuncio a Martini Bianco… Aprendi no pêlo que o pior dos copos são as misturas…. Apago a TV….
Sento-me no canapé. Ponho um cinzeiro de vidro martelado em forma de diamante na coxa direita. Com um fósforo de lareira, acendo divinal cigarrilha travando na boca o fumo primeiro…Deixo que o mesmo me inebrie o palato antes de o soltar em nuvem…
Um gole de whisky …. Lento…doce…sinto o gelo a beijar meus lábios na inclinação do copo… depois de inundada a boca, a língua… solto o malte em escoadouro ao longo da garganta que me incendeia o corpo…
Seguro o copo pelo aro maior com o braço esquerdo estendido… Nova “passa” no negro e saboroso cigarro….
Apoio o queixo na palma da mão direita e mordisco a unha do anelar…Enquanto contemplo o bailado do fumo a meio palmo do olhar….
No silencio…nem a cinza amorfa se solta… Fica presa …escondendo a chama que acendo a cada novo travo como luz de farol…
Nestas alturas gostava de ser o Batman…Não me revejo noutro super herói….
Imóvel…Erecto….Nobre…. envolto na capa , no alto da gárgulas de um qualquer arranha-céus gótico na longínqua Gotham City …aguardando que alguem alumie a noite com o ” bat – sinal"
Se tal acontecer….Solto as asas como anjo negro e plano sobre a urbe em direcção á luz…
Parte de mim…fica por lá nas avenidas sombrias e decadentes a combater o crime e o pânico lançado por Joker… A maior parte regressa cansada ao sofá …..
Não posso salvar mais ninguém….
Um despertar abrupto, atira-me á realidade…Mais silencio…Mais Noite….
De volta á solidão do espaço…
Aprendemos a ver na negrura… A Íris fica mais luminosa…As orbitas maiores…
Parecemos morcegos…
Vislumbramos cada pedaço de espaço….Com o tacto do olhar…
Damos nomes aos quadros...
Aos objectos….
Noite que não tem fim…
Ultimo sorvo que esvazia grosso copo…
Fica a definhar o gelo que não se misturou…
A cigarrilha…qual ampulheta …marca um tempo…Que se esgota a cada novo travo….
Deve ser tarde! Nem sei…
O corpo já adormeceu…
Falto eu….